Olá galera, o leitor do PraQuemPedala, Fábio Adriano Hering, escreveu esse belo texto sobre o caso Lance Armstrong.
Ele me pediu para que eu o publicasse aqui no site! Achei o texto muito bom e nem pensei duas vezes. Aqui está!
Não é apenas sobre bicicleta!
Fiquei muito triste com a notícia de que Lance Armstrong tenha talvez de devolver suas medalhas! Minha vida sempre esteve associada à bicicleta mas acabei me envolvendo mais com o ciclismo de estrada em 1999, quando comecei a pós-graduação em Campinas, já com 30 e poucos anos! Curiosa coincidência, o ano em que Armstrong ganhou seu primeiro título do Tour de France foi o ano em que comprei minha primeira bicicleta de estrada (as calois e monarks 10 que eu tive antes disso não contam)…
Impossível não ser contaminado pelo espírito de superação de Lance, suas frequências altíssimas de pedalada, sua superação do câncer, seu exemplo inspirador de alguém que pôde se reinventar, vencendo o câncer e o Tour, me contaminaram, num período em que eu fazia novos amigos, conhecia o ciclismo de estrada, aprendia a pedalar longas distâncias e começava uma vida nova em outro estado… Por tudo isso, acho que alguns detalhes sobre o caso Armstrong, que está sendo discutido acaloradamente por ciclistas, aficionados e fãs do atleta, me interessa e merece aqui alguns comentários.
Primeiro de tudo, é importante lembrarmos que os órgãos de controle de drogas no ciclismo vêm buscando estabelecer um controle sobre o que os atletas consomem já há muito tempo. A USADA (órgão de controle antidoping americano) tem levantado provas contra o ciclista nos últimos anos (com testemunhas e amostras), o que é uma lástima para o esporte.
Se Armstrong é ou não culpado das acusações de doping, lógico que isso não invalida a reputação do homem que lutou contra um câncer terminal para continuar se dedicando ao esporte… Mas, de toda forma, a miragem do doping é uma sombra de chumbo sobre o esporte hoje: nas últimas grandes competições no esporte, diversos atletas (Merckx, Contador, Pantani, e vários outros) foram desligados de provas ou tiveram suas vitórias anuladas por suspeitas de doping, e isso é coisa muito séria.
É difícil falar de caça às bruxas no caso do Armstrong, ainda mais tendo em conta que as próprias agências norte-americanas estão condenando o atleta. Falar que os casos de doping mal resolvidos do passado legitimam as conquistas dos atletas dopados, é distorcer a história e usar o passado em favor de um tribunal sem ética! Vale a pena lembrarmos que o doping não está circunscrito apenas ao ciclismo de elite internacional, povoando todos os contextos, mesmo as provas nacionais e, quem sabe, muitos atletas amadores! Cabe, com esse caso, uma reflexão sobre quais os limites e os objetivos da competitividade na prática do ciclismo.
Parece haver uma aceitação muito grande entre os aficionados e praticantes do ciclismo que o objetivo do esporte seja construir vencedores, homens fortes que veem na sua máquina a possibilidade de buscar prêmios e troféus. Se esse é o único objetivo do esporte, se é isso que ronda as conversas e os sonhos de quem pedala, pode-se incorrer no erro, na prática antiética, de se fazer o que for possível para alcançar a vitória… O antídoto para isso é uma sólida concepção ética de qual é a excelência que se busca para o homem montado em uma bicicleta!
Eu tenho a impressão que está saindo de cena, nos dias de hoje, a ideia de que a bicicleta de estrada é também uma máquina de fazer amigos e de realizar sonhos! Sonhamos o que é possível e o que entendemos ter algum valor! Podemos sonhar com uma sociedade onde o transporte alternativo seja viável e respeitado, podemos sonhar com um contato mais intenso com a natureza, podemos sonhar em cruzar continentes, sermos mais velozes que nossas próprias pernas, cruzar estradas como se fôssemos centauros… E pra tudo isso a bicicleta pode ser a máquina perfeita, na companhia dos amigos ou na solidão das nossas próprias pedaladas!
Tenho visto muitas pessoas lamentando a ausência dos atletas que foram cassados pelos exames antidoping nas últimas competições internacionais de relevo. Temo que esse lamento seja uma manifestação de uma concepção de ciclismo onde a finalidade do esporte é, apenas, estabelecer quem é o mais forte, o mais veloz, ou o mais esperto. É bom prestarmos atenção nessas escolhas que fazemos. Pois nesse dilema, ao dividirmos o mundo dessa forma (como em uma hierarquia entre quem pode pedalar na elite, na master ou entre os novatos), podemos estar escolhendo o tipo de sociedade que queremos e, por consequência, a que teremos!
Voltando ao início do texto, em que lamentava o escândalo do caso Armstrong, eu me lembro que o ciclismo se tornou uma coisa essencial em minha vida por ser uma forma de conhecer intensamente o mundo, de fazer amigos, fazer a vida valer a pena sem a preocupação mínima de provar pra quem quer que seja quem era o mais forte ou quem ganharia a medalha ou o pelotão de pedalada. Eu estou triste com o caso Armstrong por ele fazer sombra ao homem que buscou a superação, e por trazer à tona o homem que fez tudo por uma medalha! Por isso, eu sou absolutamente a favor de uma luta por um esporte sem drogas, estimulantes, potes mágicos ou fórmulas mirabolantes! E acho que a bicicleta deve ser essencialmente uma máquina de sonhar: sonhar com um ciclismo que pode valer a penas sem medalhas e com uma sociedade que seria melhor sem disputas nem trapaças!
Fábio Adriano Hering